Disciplina - Matemática

Matemática

16/06/2009

2 + 2 ? Isto é um assalto!

O relatório da polícia será taxativo. Que ele tinha uma meia na cabeça, uma arma e um plano: roubar a carteira da velhinha que passeava com seu cão. Que a noite seria banal para aqueles lados, não fosse o assalto. O relatório dirá que o homem da meia ouviu as sirenes da polícia e ficou nervoso, que disse: "É a mala ou a vida. E é já!" Que quando viu o agente ao fim da rua encostou a faca ao pescoço da velhinha. E que no momento em que viu o agente levar a mão ao bolso gritou: não me mates, eu não fiz nada! O relatório dirá, por fim, que o homem viu então que do bolso do polícia não saía uma pistola, mas uma máquina calculadora.

O futuro passa por aqui: a matemática a combater o crime. E isto só é futuro porque a realidade ainda não acordou. Deixou-se dormir e a ficção adiantou-se: desde 2005 que a série de TV "Numb3rs" anda a mostrar como é que dois mais dois podem ser mais do que quatro. Episódio atrás de episódio, o gênio da matemática Charlie Eppes ajuda o irmão, agente do FBI, a apanhar assassinos e ladrões utilizando, para isso, fórmulas matemáticas. "Numb3rs" foi exibido pela primeira vez em 2005, na mesma altura em que o neozelandês Sean Gourley começava (discretamente) uma grande pesquisa cujos resultados foram agora apresentados na conferência TED - Ideas Worth Spreading (um evento só para convidados onde as cabeças mais criativas do mundo pensam juntas).

Num ambiente muito ‘stand-up comedy', Sean Gourley diz que pode prever a violência no Iraque (o vídeo está disponível ‘online'). E não só no Iraque: diz que com o seu projecto pode pôr num mapa a distribuição dos ataques nas guerras no Afeganistão, Colômbia e Senegal. Não é piada: ele diz que pode mesmo adivinhar onde se dará o ataque seguinte. Mesmo, Sean? "A nossa pesquisa não se focou inicialmente em prever ataques. Começamos por procurar características fundamentais que pudessem definir a guerra. Perguntamo-nos se haveria ordem no meio do caos num lugar como o Iraque", responde.

"Quando descobrimos um padrão matemático, sabemos que tem de haver forças que se combinam entre si para criarem um padrão. A guerra é sempre igual porque as pessoas se comportam de maneira muito semelhante quando lutam entre si", acrescenta.

Apaixonado pela matemática das coisas, Sean Gourley confessa que sim, conhece "Numb3rs", viu mesmo alguns episódios. "É uma série interessante. As abordagens matemáticas e estatísticas são habitualmente confiáveis e representam alguns dos pensamentos mais recentes no campo científico. "Se aquilo pode mesmo acontecer é outra conversa: "O crime organizado é, pela sua natureza, difícil de perceber. As pessoas envolvidas não querem ser vistas e vão muito longe para conceber as suas estruturas. Mas é verdade que de cada vez que é cometido um crime há um sinal que é revelado. Quando combinamos uma série de sinais podemos começar a recriar a estrutura do grupo que leva a cabo os ataques."

Um botão que adivinha?

A maior parte dos investigadores concordará nisto: estamos ainda longe de conseguir prever o início de um conflito e a forma como uma guerra irá acabar. "Mas estamos mais perto do que alguma vez estivemos", diz Sean. Nélson Chibeles Martins, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e autor de uma tese de doutoramento sobre a matemática e o combate ao crime, sabe disso. Em 1998, fez a análise estatística da criminalidade em Lisboa. Tratou dados classificados: fez levantamento dos crimes por hora, dia da semana, dia do mês. Objectivo: "Facilitar a gestão das patrulhas."

Nélson Martins criou "um algoritmo que permitia que no início de cada turno a esquadra soubesse onde é que poderia acontecer o maior número de crimes". Muita ficção científica? "Só era necessário premir o botão para ler a base de dados da polícia e perceber quais eram as zonas mais problemáticas. Depois era possível determinar qual a melhor ronda para aquele dia, que caminhos devia a polícia seguir. "O trabalho foi desenvolvido em conjunto com o Centro Nacional de Informação Geográfica e a Polícia de Segurança Pública. Com ele, o crime podia ser antecipado.

Só que a implementação nas esquadras não saiu do papel. O doutoramento foi concluído em 2005 e "houve falhas de comunicação". Nélson Martins não perdeu a esperança: "Na altura um dos grandes impedimentos era a falta de equipamentos das delegacias. Hoje as delegacias já vão tendo GPS e bases de dados menos primitivas. Não perdi a esperança."

"A matemática fará previsões cada vez melhores. Mas não as do tipo que fazem astrólogos, videntes e adivinhos", explica. "Não acredito que a matemática consiga prever os números da loteria na próxima semana - ou quem vai ganhar o prêmio -, mas define com admirável precisão (conhecidos e fixados um conjunto de condições iniciais ou pressupostos) quantos primeiros prêmios serão em média atribuídos, quanto ganhará cada apostador, o montante de prêmios que cada país arrecada..."

Mas esta capacidade de adivinhação da disciplina não é nova, lembra o professor. "A matemática já firmou êxitos neste tipo de previsão em muitas áreas complexas associadas ao caos, como a meteorologia, a economia ou a sociologia. Mais: "A confiabilidade das previsões meteorológicas tem melhorado com o aumento da capacidade de tratamento de dados (melhores computadores) e melhores modelos matemáticos (melhor matemática)."

Para já, a ajuda que a matemática pode dar não é matemática, não é direta. Não é "como se cada polícia tivesse um matemático como consultor", como se sugere na série "Numb3rs", diz Nuno Crato, presidente da Associação Portuguesa de Matemática. Para o professor, não se deve confundir a capacidade de descrever estatisticamente um fenômeno com a capacidade de o prever. Mostrar que existe um padrão não é a mesma coisa que conseguir prevê-lo. "A série de que falamos é bem feita e cuidadosa. Apresenta situações plausíveis, mas também é exagerada."

E se o exagero andar lado a lado com o sucesso? Nélson Martins sabe que foi ambicioso quando disse que conseguia criar um botão que adivinhasse onde iriam ser cometidos os crimes naquele dia. Mas criou-o. Ele ainda não existe em cada delegacia, mas já existe numa gaveta. E um dia vai servir para dar o alerta. Nas delegacias acontecerá o seguinte diálogo: "- Vai acontecer um assalto na rua x. - Sigo para lá, chefe? - Sim. E por favor não te esqueças da máquina calculadora."

Fonte: SAPO.
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